quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Da vez em que saí andando







I




A madrugada estava conturbada. Dentre as besteiras da televisão e as besteiras de minha mente qual escolher?

De uma da manhã somaram-se mais três horas, e quando dei por mim o relógio havia corrido corrida com obstáculos, e ganhado de mim.

Coloquei música para um banho quente, quem sabe isso me fizesse relaxar.

Peguei toalha da janela, desliguei as luzes e fiquei somente à luz da rua. Que sensação boa era não enxergar, e saber ainda assim onde estava.

Até hoje não sei dizer quanto tempo passei, sei apenas de minha crescente vontade de fazer algo que me fizesse inteiro.

Meus amigos, às nove da manhã, se reuniriam na praia para aproveitarmos mais um dia de verão; foi aí que me ocorreu a idéia, e por que não?





II



Sequei-me, vesti-me com regata, bermuda e tênis confortável. Enchi minha garrafinha de água, peguei minha simplória câmera compacta e, junto de roupas extras pós-praia e alguns lanches empacotados, coloquei-os todos em minha mochila.

Em seguida, com meu mp3 de pilha completamente carregada, meu celular e minha cabeça e corpo leve fechei as portas de meu quarto alugado, fechei as portas da cozinha de acesso à rua, e desci os primeiros degraus.

A noite ainda estava fechada, eram apenas quatro e tantas da manhã e o Sol nem ensaiava em levantar do horizonte. Minha intenção primeira era assistir ao seu nascer na Praia Mole, molhar meus pés na água gelada e revolta e seguir até a Praia da Barra da Lagoa, onde estariam todos.

A adrenalina corria minhas veias, agora feitas de pura excitação. A cada passo um ensaio de desistir.



III



Poucas vezes senti tanto medo, mas tanto prazer; era um orgasmo em conjunto entre eu e a vida. A única iluminação durante a subida do morro da lagoa eram os postes, que por estarem um tanto distantes um do outro, não cobriam todo chão feito somente de asfalto. Nunca quis tanto encontrar uma calçada.

A subida não era cansativa, mas eu estava ofegante pela preocupação de algum carro, em sua desatenção de férias, não se importar em utilizar os cantos da pista. Mudava de lado sempre que podia, para onde pudessem também os motoristas me ver.

Lá pelas tantas resolvi olhar para trás, e que vista linda. Eu ainda estava na metade do caminho de subida, mas a cidade já estava visivelmente para trás, com suas lâmpadas e prédios e ruas e carros. Minha câmera de mão já estava cansada de registrar o caminho, mas minha mão elétrica em apertar o botão da pequena digital. Minhas pernas tremiam, e penso que talvez teria sido melhor aceitar a carona do carro em que quatro mulheres estavam visivelmente enlouquecidas por um parceiro – percebível pelos berros e gritinhos ao passarem em seus oscilantes trinta e noventa quilômetros por hora.



IV




Chegar ao topo realmente lhe dá a sensação de poder, principalmente quando utilizado apenas de suas pernas. O dia estava clareando, havia calculado mal o tempo ou havia eu perdido tempo demais na subida? Não me importava. Eu chegaria quando havia de chegar, e estaria lá na chegada para contar.

Descer, aí descer torna-se mais tranqüilo. Com o dia querendo começar, ciclistas já começavam a pedalar, e corredores a correr, e eu a cumprimentá-los com sorriso de marinheiro de primeira viagem de aventuras de mim comigo mesmo.

Para descer, diz o ditado, todo santo ajuda; mas não foram necessários. Estavam eles assistindo em sua TV à cabo e rindo de minha idéia que poderia claramente ter dado muito errado.

E que cena linda é da Lagoa da Conceição em aurora. Sempre a vi, desde minha infância, e nunca quisera prestar atenção como prestei enquanto estava no mirante, e que lembrava e pensava sobre enquanto lutava contra meu já cansaço perante a gravidade que puxava meus pés para baixo da ladeira.

Quando terminou, praticamente agradeci por poder pisar em chão nivelado, e comecei a procurar uma boa padaria para meu desjejum.

Passava uma, passava outra, e já chegava nas Rendeiras quando percebi que não precisava ainda. A lagoa calma, as gaivotas gavoteando, os passantes passeando; eu, click aqui, click ali. Não sinto orgulho de muitas fotos das muitas, muitas mesmo, que tirei; meus olhos ardiam pelo sono e pela luz, que ainda fraca, mas que também novidade.




V




Após a parada para o suco natural e um sanduíche muito, muito estranho, subida. Morro da Mole, enfim. Ainda bem que com este estava acostumado, o que honestamente já não mudava muito o quadro: camiseta suada, pés doloridos, costas doendo do peso da mochila.

A segunda subida e descida foram de absurda concentração para ver o primeiro objetivo: a primeira praia. Quando vi a areia saindo da pequena trilha que tinha que atravessar despi os pés e que bom foi pisar na luva que estavam os grãos de areia.

Nos meus ouvidos começavam os primeiros acordes de Feeling Good, interpretado pelo genial Michel Bublé. A praia aparecendo aos poucos entre o matagal, o mar revelando-se aos poucos, e enfim... “it’s a new done, it’s a new Day, it’s a new life for me... and I’m Feeling Good…” (é um novo objetivo alcançado, é um novo dia, é uma nova vida para mim… e eu estou me sentindo bem).

Sentei-me na areia exausto, com meus olhos marejados pela música, pela cena em que estava protagonizando. O mar quebrando violentamente logo na beira, e um pequeno lago formado pela descida da maré.

Ao longe apenas uma cadeira de praia e um guarda-sol, sozinhos. Deus estava sentado ali aquela manhã, e acenou para mim, orgulhoso.

It’s a new done

It’s a new day

It’s a new life

And I’m feeling good

A música terminava, coloquei-a para repetir e segui caminho.






VI




Havia já lavado a Alma. Subir novamente mais um morro e descê-lo, os fiz feliz e de câmera na mão, claro.

A Lagoa voltava a ser minha companheira em minha caminhada, e o Sol forte minha preocupação. Estava sem protetor solar ou boné, e tudo o que pude fazer era jogar o resto de minha água em minha cabeça. O dia estava lindo, sem nuvens, porém perigoso para alguém sem planejamento como eu.

Dali pensava eu ser próximo de minha chegada, mas estava redondamente enganado. Após pegar a rua que desembocava para a Praia da Barra, além de poucas belezas, um muro enorme em extensão que repetiu-se por metade do caminho, e que me deu a péssima sensação de não sair do lugar. Foi, de longe, o trecho mais cansativo. Minha sorte é de que estava chegando.

O centrinho de lojas e sorveterias começou a dar a sua cara depois de uma meia hora de caminhada lenta e paciente. Os chinelos turistas já enchiam as ruas das nove e meia da manhã.





VII




Chamaram-me de louco ao contar a história, e alguns demoraram a acreditar, e não sei até hoje se acreditam realmente. Tampouco eu entendo os motivos, só sei do que fiz, e que não saberia se faria de novo o mesmo caminho, mas fiz em golpe de coragem e tédio.

Fiz, e que bom foi seguir meus instintos mais uma vez.



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