domingo, 31 de outubro de 2010

Mas até lá



Tenho as malas prontas desde que nasci,

digo a sério e ninguém me acredita. Ninguém confia em minha organização, ao menos quem me conheça; mas pouco entendem que não é a mala da mochila que preparo, é a bagagem da vida.

A viagem está posta à frente, a sede está sedenta de não tédio e perdições por ruas de não sei o nome.

Quem sabe um dia eu chegue aos lugares em que nunca quis ir, pois será prova de já ter ido a todos que sempre sonhei.

Quem sabe um dia eu vá, mas até lá...

até lá não sei. Até lá é um sonho de criança,

apenas.

Apenas não, melhor:

ainda.

Ainda um sonho de criança. A qual não mato e me orgulho ao me chamarem

- Infantil...!

Se toda história tem dois lados, prefiro ver o lado do Pequeno Rei.

Se toda história é feita de amores, prefiro não ver; pois ainda tenho meu lado criança, e por mais que tenha medo do que não conheça,

me apavora ainda mais com o que crio na minha cabeça.

Tolo



Ando nem querendo,

nem tentando,

nem supondo.

Ando pensando só para onde ir depois daqui, e seguir com minha vida

– sem coesão,

sem ritmo moderado,

sem moderação.

Ando é aproveitando a luz do abajur como sendo meu Sol, e os raios de luz do dia que passam pelos furos de minha parede de madeira imaginando serem constelações de estrelas. Ando entendendo pouco,

esperando pouco,

buscando pouco.

Ando assistindo onde vender meus reles sapatos em troca de um pouco mais de passos; que pelo chão de pedra,

dolorosos,

mas ainda assim passos.

Ando nessa de fugir, mas se não enxergo meus chinelos quando estão eles bem em minha frente, como posso pensar ser capaz de escapar depressa do que mal posso ver?

Tolo.

Me dizem

- Tolo.

Me entendo como tolo.

Me suponho como um tolo.

Mas ando não supondo e pouco entendendo, então como vou querer

– quando tampouco ando querendo

sentir-me tolo?

Por isso repito

– sem coesão

e não preciso mais de explicação.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Em meio a tantos como nós



A chuva caía e nada mais importava. Tudo que podia ouvir era o som que vinha lá de muito longe e do som que provinha das vozes insanas ao meu lado. Gritavam coisas que eu não podia entender e eu também gritava tudo o que eu gostaria de cantar e que ninguém mais podia entender.

Eu prestava atenção nas mãos que se encontravam por uma questão única e sua, somente sua. As luzes que iluminavam a todos nós também se encontravam às gotas de chuva que se encostavam em nossos rostos como que benção divina, que nos lavavam o suor do cansaço prazeroso do prazer de estarmos todos nós ali, e somente ali, sozinhos em meio à multidão solitária.

Pulávamos todos, cantávamos todos, esquecíamos todos de nossas vidinhas sacais; estávamos todos unidos, esquecendo-nos todos juntos de tudo mais que nos restava preocupar. A casa, a família, os amores passados e presentes e os futuros que nos esperavam; nada mais. Éramos todos um, únicos de nossas preocupações e ignorantes de nossas responsabilidades. A água que caia e nos beijava pelo corpo tornava a nós nada mais que grãos iguais a todos os outros grãos no universo, e nada, nada mais.

Éramos tudo que queríamos ser:

nada mais que um ponto que formava a leve e linda grossa multidão de quem via,

nada mais que nossa alegria, e as dores que nos perseguia.


A chuva caía e nada mais importava, a não ser a música e nós mesmos em meio à multidão de solitários cansados, em meio a tantos como nós.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Da vez em que saí andando







I




A madrugada estava conturbada. Dentre as besteiras da televisão e as besteiras de minha mente qual escolher?

De uma da manhã somaram-se mais três horas, e quando dei por mim o relógio havia corrido corrida com obstáculos, e ganhado de mim.

Coloquei música para um banho quente, quem sabe isso me fizesse relaxar.

Peguei toalha da janela, desliguei as luzes e fiquei somente à luz da rua. Que sensação boa era não enxergar, e saber ainda assim onde estava.

Até hoje não sei dizer quanto tempo passei, sei apenas de minha crescente vontade de fazer algo que me fizesse inteiro.

Meus amigos, às nove da manhã, se reuniriam na praia para aproveitarmos mais um dia de verão; foi aí que me ocorreu a idéia, e por que não?





II



Sequei-me, vesti-me com regata, bermuda e tênis confortável. Enchi minha garrafinha de água, peguei minha simplória câmera compacta e, junto de roupas extras pós-praia e alguns lanches empacotados, coloquei-os todos em minha mochila.

Em seguida, com meu mp3 de pilha completamente carregada, meu celular e minha cabeça e corpo leve fechei as portas de meu quarto alugado, fechei as portas da cozinha de acesso à rua, e desci os primeiros degraus.

A noite ainda estava fechada, eram apenas quatro e tantas da manhã e o Sol nem ensaiava em levantar do horizonte. Minha intenção primeira era assistir ao seu nascer na Praia Mole, molhar meus pés na água gelada e revolta e seguir até a Praia da Barra da Lagoa, onde estariam todos.

A adrenalina corria minhas veias, agora feitas de pura excitação. A cada passo um ensaio de desistir.



III



Poucas vezes senti tanto medo, mas tanto prazer; era um orgasmo em conjunto entre eu e a vida. A única iluminação durante a subida do morro da lagoa eram os postes, que por estarem um tanto distantes um do outro, não cobriam todo chão feito somente de asfalto. Nunca quis tanto encontrar uma calçada.

A subida não era cansativa, mas eu estava ofegante pela preocupação de algum carro, em sua desatenção de férias, não se importar em utilizar os cantos da pista. Mudava de lado sempre que podia, para onde pudessem também os motoristas me ver.

Lá pelas tantas resolvi olhar para trás, e que vista linda. Eu ainda estava na metade do caminho de subida, mas a cidade já estava visivelmente para trás, com suas lâmpadas e prédios e ruas e carros. Minha câmera de mão já estava cansada de registrar o caminho, mas minha mão elétrica em apertar o botão da pequena digital. Minhas pernas tremiam, e penso que talvez teria sido melhor aceitar a carona do carro em que quatro mulheres estavam visivelmente enlouquecidas por um parceiro – percebível pelos berros e gritinhos ao passarem em seus oscilantes trinta e noventa quilômetros por hora.



IV




Chegar ao topo realmente lhe dá a sensação de poder, principalmente quando utilizado apenas de suas pernas. O dia estava clareando, havia calculado mal o tempo ou havia eu perdido tempo demais na subida? Não me importava. Eu chegaria quando havia de chegar, e estaria lá na chegada para contar.

Descer, aí descer torna-se mais tranqüilo. Com o dia querendo começar, ciclistas já começavam a pedalar, e corredores a correr, e eu a cumprimentá-los com sorriso de marinheiro de primeira viagem de aventuras de mim comigo mesmo.

Para descer, diz o ditado, todo santo ajuda; mas não foram necessários. Estavam eles assistindo em sua TV à cabo e rindo de minha idéia que poderia claramente ter dado muito errado.

E que cena linda é da Lagoa da Conceição em aurora. Sempre a vi, desde minha infância, e nunca quisera prestar atenção como prestei enquanto estava no mirante, e que lembrava e pensava sobre enquanto lutava contra meu já cansaço perante a gravidade que puxava meus pés para baixo da ladeira.

Quando terminou, praticamente agradeci por poder pisar em chão nivelado, e comecei a procurar uma boa padaria para meu desjejum.

Passava uma, passava outra, e já chegava nas Rendeiras quando percebi que não precisava ainda. A lagoa calma, as gaivotas gavoteando, os passantes passeando; eu, click aqui, click ali. Não sinto orgulho de muitas fotos das muitas, muitas mesmo, que tirei; meus olhos ardiam pelo sono e pela luz, que ainda fraca, mas que também novidade.




V




Após a parada para o suco natural e um sanduíche muito, muito estranho, subida. Morro da Mole, enfim. Ainda bem que com este estava acostumado, o que honestamente já não mudava muito o quadro: camiseta suada, pés doloridos, costas doendo do peso da mochila.

A segunda subida e descida foram de absurda concentração para ver o primeiro objetivo: a primeira praia. Quando vi a areia saindo da pequena trilha que tinha que atravessar despi os pés e que bom foi pisar na luva que estavam os grãos de areia.

Nos meus ouvidos começavam os primeiros acordes de Feeling Good, interpretado pelo genial Michel Bublé. A praia aparecendo aos poucos entre o matagal, o mar revelando-se aos poucos, e enfim... “it’s a new done, it’s a new Day, it’s a new life for me... and I’m Feeling Good…” (é um novo objetivo alcançado, é um novo dia, é uma nova vida para mim… e eu estou me sentindo bem).

Sentei-me na areia exausto, com meus olhos marejados pela música, pela cena em que estava protagonizando. O mar quebrando violentamente logo na beira, e um pequeno lago formado pela descida da maré.

Ao longe apenas uma cadeira de praia e um guarda-sol, sozinhos. Deus estava sentado ali aquela manhã, e acenou para mim, orgulhoso.

It’s a new done

It’s a new day

It’s a new life

And I’m feeling good

A música terminava, coloquei-a para repetir e segui caminho.






VI




Havia já lavado a Alma. Subir novamente mais um morro e descê-lo, os fiz feliz e de câmera na mão, claro.

A Lagoa voltava a ser minha companheira em minha caminhada, e o Sol forte minha preocupação. Estava sem protetor solar ou boné, e tudo o que pude fazer era jogar o resto de minha água em minha cabeça. O dia estava lindo, sem nuvens, porém perigoso para alguém sem planejamento como eu.

Dali pensava eu ser próximo de minha chegada, mas estava redondamente enganado. Após pegar a rua que desembocava para a Praia da Barra, além de poucas belezas, um muro enorme em extensão que repetiu-se por metade do caminho, e que me deu a péssima sensação de não sair do lugar. Foi, de longe, o trecho mais cansativo. Minha sorte é de que estava chegando.

O centrinho de lojas e sorveterias começou a dar a sua cara depois de uma meia hora de caminhada lenta e paciente. Os chinelos turistas já enchiam as ruas das nove e meia da manhã.





VII




Chamaram-me de louco ao contar a história, e alguns demoraram a acreditar, e não sei até hoje se acreditam realmente. Tampouco eu entendo os motivos, só sei do que fiz, e que não saberia se faria de novo o mesmo caminho, mas fiz em golpe de coragem e tédio.

Fiz, e que bom foi seguir meus instintos mais uma vez.



sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Ao irmão



Era um garoto agitado, de gênio conturbado. De ações inacabadas, com sotaque engraçado. Em todas as horas agitava, a todo momento abraçava, empurrava, corria...
Uma vez bateu a cabeça por pular demais, ela sangrou.
Outra vez bateu a cabeça por pular demais, ela sangrou.
O garoto nunca parou, mesmo assim o garoto pulou.
Se afogou, tombou, apanhou, tropeçou, esbarrou...
Porém ao menos nadou, levantou, estapeou, correu, tentou.
É um garoto curioso. De curiosidade aguçada; de jeito engraçado.

Ouve tudo o que ouço -segue meus passos, faz o que faço, pergunta o que respondo, se interessa - para fingir ser gente grande - sem saber que nenhum de nós dois somos.

E quando



E quando me falta assunto?
Que faço?

Grito,

Sapateio,

Faço estardalhaço?


E quando me falta assunto?

Que faço?

Canto.


E quando me falta assunto

Brinco de palco

Acerto

Ao querer me dar por errado

Me dôo a mim mesmo


E quando me falta assunto?

Que faço?

Confesso.


E quando me falta assunto

Digo ao vento

Tento

Esqueço-me e lembro

Que falta você me faz.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Vir, Ir



I



As luzes da cidade cegavam meus olhos cansados. A noite havia sido comprida e o sono curto. De novo as estrelas escondiam-se. Agora, o céu seco e frio.


As luzes da cidade acompanhavam-me mais que minha consciência. Já enxergava como um míope enxerga. Decidi ir ao topo de qualquer lugar que me colocasse visão de horizonte expandido, e lá estava eu na passarela, acima dos carros, das pessoas e de algumas construções. Coloquei-me acima de mim, enfim.


Que bela imagem é o formigueiro humano, construído de neon e sonhos, construído por mãos e... raios...! Que mais pode o homem inventar?!


Posso voar, posso andar mais rápido que qualquer animal na terra, posso mergulhar nas profundezas de qualquer oceano.


...


Que mais pode o homem inventar...?


A cura para as doenças da Alma, quem sabe;


Quem sabe a plenitude. Eis uma bela invenção em mundo onde nada é pleno, em mundo que só existe por criatividade humana e imaginação divina.



II



As luzes da cidade apenas não cegavam meu passado.


Tão grande diferença escrita;


Tão grande diferença sentida.


Vir,


Ir,


Palavras tão ironicamente próximas, deleitando-se de sentidos absurdamente opostos, se postados onde estou. Sei do fator intrínseco dado ao chegar e ao partir, mas nada é tão inseparável se visto apenas de um lado da história. E quem conta a história sou eu, afinal, não sou? E não posso ser purista ao pensar em levar em consideração mais de uma viagem, que não a minha e de onde passo com meus olhares. O que se foi, se chegou à algum lugar não sei, foi-se de mim e é tudo que me restou saber.


Tão grande diferença escrita;


Tão grande diferença sentida.



III



O vento frio me bastou para descer ao nível em que estavam todos os igualmente cansados, os igualmente de olhos fechados.


...


Que mais pode o homem inventar...?


Nada. Por agora tudo que preciso é de minha cama.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

As mãos


As mãos pequenas do pequeno moleque insistiam em estar sujas de terra, sujas de idéias. De manhã a escola o mantinha preso no saber que pouco lhe prendia, com crianças que pouco lhe interessavam e ensinavam nada que nem um pouco lhe importavam. Ah... mas os brinquedos... os brinquedos e ele se confessavam histórias que jamais existiram, levavam-se de volta a lugares que nunca tinham ido, compartilhavam a coragem de pular de um abismo e nem sequer arranhar-se.
Ele, a criança, não se importava com parques, com piscinas, com o real. Era o imaginário, o desconhecido a sua alavanca. Era o espaço, o fundo do mar, as profundezas de Terra. As suas asas eram brancas, enormes, como um pássaro alvo, puro. Os seus saltos duravam horas e seus vôos meses. Sua voz cruzava o planeta três vezes, se dita alta, para que todos pudessem saber o que ele estava querendo. Quanto à ele, ninguém o precisava dizer nada, pois podia ele ler pensamentos a quilômetros e mais muitos quilômetros de distância.
Estava sempre cercado dos seus brinquedos, das suas histórias, e o resto que seja o que fosse. Em seu reino, um belo dia lhe contaram sobre um dragão. Disseram-no para ter cuidado, diziam ser perigoso, diziam-lhe ser mágico. Contaram também onde o tal dragão morava, disseram ser numa colina alta o bastante para ninguém querer subi-la. O garoto, bravio e confiante disse aos aldeões para não se preocuparem, ele iria derrotá-lo e todos poderiam viver tranquilamente.
Subiu, pois, o garoto, com suas asas e sua velocidade. Chamou o tal dragão e sem demora apareceu em sua frente algo gigante vermelho e negro, sem dentes pela velhice, porém aparentemente fortíssimo. Após um tempo da batalha o garoto percebeu a destreza e sabedoria sobre lutas que o tal dragão havia ganho com o passar de tanto tempo, mas o garoto logicamente derrotou o tal dragão mágico. Em suas últimas palavras lhe disse o dragão
- Amaldiçoar-te-ei, garoto. Quando acordares terás a idade de quem te cria, e criarás alguém de tua idade agora.
- Pois não podes me atingir, voarei antes que possas jogar tuas palavras em mim!
E assim o garoto o fez. Fugiu o mais rápido que pode, fugiu como quem fugia de tudo o que mais poderia lhe machucar. Fugiu por dias, por meses, por anos, e adormeceu.

O despertador só sabia fazer um único barulho, porém chato o bastante para acordar uma pedra. Ou melhor, uma pedra em ressaca.
Olhou para o lado e não reconheceu quem estava ali. Estava nu, e pelo visto estava ela também. Sentou-se na cama e tentou lembrar do sonho que havia tido naquela noite, o fez suar mais que os rounds da noite. Não havia desligado o despertador ainda e a mulher o xingou.
Nunca entendia essas com quem saía. Estavam ali com ele, não estavam? Então que se acalmassem. Pegou o maldito despertador e o desligou sem carinho algum. Levantou-se sem se preocupar com roupões ou lençóis e pegou uma toalha seca.
- Vou tomar banho, se quiser tem comida na geladeira, se não, estou no chuveiro.
Ela mal se mexeu, e ele praticamente agradeceu. Alguém morto em sua cama seria melhor do que transar mais uma vez com aquela mulher, ou alguém mexendo na sua geladeira.

O barulho da água batendo no chão, do chuveiro funcionando; o vapor cobrindo os vidros, o espelho, encobertando os objetos distantes; talvez não conhecesse outra maneira mais bela de viver um começo e um fim de dia. Seus cabelos estavam cumpridos, mas suas mãos grandes podiam lavá-los por inteiro. Suas mãos eram enormes, sua estatura era de homem formado, seus trinta e quatro anos eram de homem bem-sucedido, assim como seu banheiro, seu quarto e o resto de sua casa. Sua companhia, também, dependendo do prisma em que olhava.
Mal percebera o tempo passar, ou os cabelos das pernas crescerem, ou seus pés calçarem 42. Mal se lembrava de como era antigamente, como era seu corpo antigamente. A água estava pelando, como sempre gostou; e o banheiro finalmente outro mundo, como sempre se viu estar. Um mundo mais branco, mais seu. Seu rosto não conseguia permanecer embaixo da água quente, então tirou o sabão com as mãos húmidas e esperou que funcionasse, como sempre. Ensaboou primeiro seus braços, depois seu peito, desceu e lavou as partes que lhe mais proviam diversão, depois as que algumas resistiam a deixar ele se divertir. As pernas, e por fim os pés. Seu ritual sagrado não se alterava desde muito tempo, e mal soube ele solucionar de onde havia tirado esta regra em que havia se imposto. Resquícios do sonho lhe vieram à mente. O colorido, os vôos. O sonho mais lhe parecia Dèja Vú.
O banho estava demorando demais, abriu o Box com suas mãos murchas e viu o relógio; estava começando a se atrasar. Pegou sua toalha e ainda com o chuveiro ligado secou-se. As mãos murchas na toalha nova, depois as mãos murchas para fechar a água. As mãos murchas para fechar o Box. Sentia-se cansado. As mãos murchas desembaçaram o espelho, e as mãos murchas apoiaram-no em frente ao seu reflexo. Sentia-se cansado ainda.
- Ainda? – disse baixinho, rindo em ironia.
Não conteve sua angústia. Pedaços do sonho continuavam transbordando pelos seus olhos. Via tudo claramente. Tirou as mãos murchas do mármore de sua pia, encostou-se e levou-as ao seu olhar. As mãos estavam murchas.
As mãos, antes sujas do dia, antes sujas da noite, estavam, agora, murchas.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Pela janela


O tempo passa para todos, mas resolveu parar para mim. As mesmas pessoas estão cada vez mais diferentes, e o motivo já nem sei. Antigamente me dava desculpas.
- Ficar a sós comigo mesma, saudável. – me sentava e via minha novela.
- Conhecer alguém diferente, hoje não. – me sentava e assistia ao jornal.
- Cinema para quê? – me sentava e assistia à sessão da tarde.
E trabalhava. Nunca saí um dia do trabalho sem tentar ao máximo pegar uma linha a mais para cobrar e dizer
- Obrigada. – com sorriso no rosto.
Sempre sonhei em viajar o mundo com minha mala e meus cigarros. Com meu som de bolso e minha mente de mundo, e minha sede de mais, e uma cerveja para matar o calor – ou um vinho para beber do gosto do frio. Trabalhar nos ônibus me ajudou a deixar o sonho para trás, e por isso gostava de ser colega de motoristas que corriam rápido demais. Eles para que o dia termine, para reverem sua família; eu para deixar o passado da menina viajante abanando. Já joguei o lenço branco pela janela quando me vi presa ao cartão de crédito, e ao salário do fim de mês, e ao cartão do supermercado. Sei que nunca mais vi pela janela, já não me dava mais tesão; as mesmas paisagens, que transformaram-se e pouco fizeram diferença para mim. O barulho dos metais se batendo do ônibus velho viraram canção da nostalgia, de quando ela me incomodava e eu só me dizia
- É por pouco tempo, só até eu me acertar e ganhar dinheiro para eu poder sair.
Eu ia virar passageira, e me transformei numa espécie de cargueira de almas, que vem e vão e eu, aqui.
Eu me transformei no monstro que sempre tive medo de ser, quando eu pensava no que poderia acontecer quando eu crescer. Me transformei na Tia das Balas, que nunca saia daquele mesmo lugar sujo, de balcão de tampa de alumínio e olhos iguais, dia após dia.
As sacudidelas que o ônibus dá me acordam do sono, as sacudidelas da vida nunca me vieram; talvez seja disso que eu esteja precisando, de uns tapas na cara, de uma água gelada.

A noite acaba e meu supervisor me obriga a ir para casa. Especialmente hoje os quadros estão cheios e é claro que ninguém quer pagar a mais por alguém que pouco pode fazer. Dei-me ao luxo de mudar de bar, para comemorar mais um dia de derrota e menos um dia daquilo que sei estar sendo inútil fazer.
O bar era mais aconchegante. Luzes baixas, cadeiras de madeira, mesas de madeira, paredes de madeira; preços de cara de pau. Mas eu precisava me sentir importante para mim mesma. Me perguntaram o nome
- Eliza, coloca Eliza na comanda.
- Já quer pedir ou prefere ver o cardápio?
O bar onde eu ia só tinha as mesmas cervejas das propagandas. Entre as ruins, existiam algumas realmente boas. Mas hoje, pensei: porque não?
- Heineken, então.
- Heineken saindo!
Ainda preferia algumas, mas eles não tinham. Heineken, então.

Ontem bebi algumas a mais do que o planejado. Não sei quantas, mas foi bom. Precisava. Hoje mais um dia de cobrar e agradecer.
Queria eu poder cobrar o que eu realmente queria cobrar, mas se cobrasse de mim mesma eu não teria como dizer
- Muito obrigada, tenha um bom dia.
E sorrir. Sorrir depois, definitivamente não.
A rotina estava me matando. Acordar, fazer café da manhã, comer café da manhã, arrumar a casa, fazer almoço, comer o almoço, lavar a louça do almoço, arrumar a cozinha, tomar banho para ir trabalhar, ir para o trabalho, chegar no trabalho e cobrar e dizer
- Obrigada, tenha uma boa tarde.
Agradecer já não me fazia sentido. Pelo que eu estava agradecendo? Talvez pelo meu salário, aquele que paga toda uma vida que não quero e nunca quis ter. Vai saber. Talvez eu deva apenas ter coragem de me olhar no reflexo da janela em minha frente. Sair, e dizer
- Obrigada, tenha uma boa noite.
E ir.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Reflexo


No espelho
por vezes me vejo lindo,
por vezes me vejo louco.
E sei ser culpa da loucura
que me toma,
que me pesa,
que sempre quer mais.

No espelho não envelheço,
pois nunca sou o mesmo.
As marcas diferem a cada passo,
e a cada pessoa peso diferente
– a cada decisão,
a cada condição,
conceção.

No espelho me perco. Não sei se sou reflexo
de mim mesmo
ou daquele que espero ser quando crescer,
ou quando resolver tomar coragem
de ser o que sou,
o que tento ser,
o que vejo a todo anoitecer.

No espelho é tudo
e nada mais
que qualquer pessoa que não me conheça
irá conseguir prever de minha personalidade,
que pouco importa
a quem me vê pela sua primeira
ou última vez;
sou a imagem,
sou o reflexo,
e sou tampouco nada disso.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Para não ser o único idiota


Se eu pudesse relembrar de todas nossas conversas eu escreveria um livro, só para não me sentir o único idiota no mundo a sentir saudades de revivê-las. Elas eram boas, não eram? Se pudessem ler o que eu teria para escrever concordariam, sei que concordariam.
- Seu imbecil, por que estragar tudo?
A resposta seria...? Pois a pergunta cabe tanto a mim quanto à ti. A minha seria, ao ponto de faca em que estou:
- Porque sim.
A sua seria...?
- Gostaria eu de saber – lhe diria.
- Gostaria eu de saber? – me perguntaria em seguida.
- Gostaria? – perguntaria então a mim.
Tudo que me vêm à cabeça é uma sucessão da mesma pergunta em uma conversa que me vem durando muito mais tempo do que eu gostaria – irônico, no mínimo.

Hoje estava passeando e não consegui conter minha vontade em ver o palco em que alguns cenários foram montados para nossos dramas. Sempre tudo tão coeso e insuportavelmente juvenil. Tudo sempre tão confiável e esclarecedor entre nós e as cervejas. Tudo tão... tão sempre...
me pus a perceber as ondas que a tal lagoa acariciava sua extensão mínima de areia e... e... tudo tão sempre...
tudo tão sempre... sempre. Simples assim, e tudo tão sempre simples assim. Era sempre minha confiança em ti, e era tão tudo simples, simples como algo inintendível, como Semiótica ou Deus, tão ridiculamente simples que pouco se entende; que muito demora-se a perceber da simplicidade, da facilidade a aceitar. Tudo tão sempre...
Me senti um verdadeiro idiota. As ondas tentavam cada vez mais e mais chegar mais perto de meus pés e eu tentava cada vez mais e mais sair dali e procurar por minhas perguntas sem resposta.
Sou um idiota, isto é um fato conclusivo a todos que me conheçam há cinco minutos, não nego; somos todos, graças à algo. Se não fossemos idiotas, todos idiotas, onde estaria a graça de dizer a palavra que todos insistem em chamar de aquilo que teimo em não dizer aos que importam? Van Gogh – e foi ele mesmo? – arrancou sua orelha direita – ou teria sido a esquerda? - pela tal palavra. Shakespeare, eu e tantos outros idiotas seguem a escrever sobre ela. E me incluo nestes que são idiotas de primeira classe por eu nem saber direito como terminar o que começo a dizer. Tudo que consigo agora é saber que sou idiota como eles, que a cachaça realmente não faz bem e que nossas conversas eram boas. Por que eu estrago tudo? Porque sim. É tudo sempre tão... simples.
E você, o que diria?

sexta-feira, 8 de outubro de 2010


Eu sou desses que teimam em ir
Porque precisam voltar
Não preciso de um lar
Preciso de ar nos pulmões
Do mundo aos meus pés
E estar segurando-me no penhasco com minhas próprias mãos.

Não digo que preciso do perigo
Não, ao contrário,
Preciso da calmaria da minha alma
Que sente-se calma quando encontra
Um novo lugar seu
E a saudade.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010


Nada nunca me deixou tão feliz quanto a sua companhia. Digo a sério, e você não acredita. Os seus passos eu reconheço, os seus gestos eu reconheço à distância, e te digo a verdade e você desconfia com seu olhar facilmente reconhecível de constrangimento e felicidade.
Nunca me disseste o contrário, então nunca suspeitei da contrariedade da sua felicidade perante a minha sincera e já confessa alegria. Se sentes o mesmo, se não sentes, tenho que dizer que pouco me importa. Me importa tua energia perto da minha; me importa teu olhar olhando para o meu. Me importa saber que não estamos juntos ainda, mas que estamos indo para algum lugar. juntos. Me importam meus erros se forem feitos puramente por distração em estar pensando em você. Eu falo sério, e você não acredita. Será tão difícil acreditar?
Somos novos, somos ingênuos, e quem disse isto ser um fardo? Se pouco conhecemos aproveitemos de nosso pouco conhecimento para desfrutar do que agora temos. Oras...! Se estamos nós dois e o mundo nos basta para que haver mais do mundo, quando a curiosidade mata o gato e pensar mata o burro de tanto se questionar?
De tanto me questionar me cansei. Me cansei, e falo sério. Os dramas escolares, os pequenos percalços adolescentes, os testes, tudo. Viverei, pois, para o agora; me dou por satisfeito com minha ingenuidade. Não se dão os adultos também?
Eles que tanto procuram pela alma gêmea, me proíbem de ter uma por pensarem que sou novo demais; o que querem eles? Serão eles amargurados demais, invejosos demais, por me verem tão feliz contigo a ponto de se forçarem a me olhar e dizer:
- Tão novinho, meu filho, não sabes o que tu quer da vida e ainda achas que já tu encontrou tua companheira de toda vida? Mal eu encontrei...!
Fico sempre sem resposta, pensando o quanto são infelizes ao calcular encontrar sua felicidade próxima dos trinta anos. O quão podem ser eles ingênuos, e não eu que já me encontrei feliz na primeira tentativa.
Eles tem experiência, não posso negar, mas não tem a felicidade que eu tenho. O peso do mundo pouco me importa, o cinza do mundo pouquíssimo me importa. Sou todo isto que sinto agora e faz meu corpo levitar enquanto penso nas possibilidades para o amanhã, e nada mais. Posso estar cinza, e podes estar a cor que quiseres, somos nós mesmos e por seres o que tu és que sinto o que sinto, que sinto o coração na boca e a minha boca na tua boca. Sou jovem, sim; mas estou aqui como todos os outros que estão aqui, e que caminham por onde passo eu também, e que espirram no frio que me faz espirrar também. Por que não posso eu encontrar o que todos buscam antes do que muitos que estão aí antes que eu?
Não que eu conheça o mundo, mas o mundo pouco me interessa quando tenho a felicidade.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010


Que dia...! Que dia cinza. Que dia... Que dia “meio”. Estou meio acordada, tomei o café-da-manhã pela metade. Estou meio com pressa, pois estou meio atrasada; mas tanto faz, estou meio que nem aí mais. Estou, inclusive, meio sentada neste ônibus meio lotado, onde um cara que, por exceção de regra, está ocupando quase que o banco por inteiro, deixando-me à meia bunda do chão – por não querer dizer nádegas, nádega é uma palavra meio esquisita.
Deixei meu trabalho da faculdade pela metade ontem, e hoje meio que não tive tempo para terminar. Deixei minha cama meio desarrumada, pois meio que estava sem tempo para arrumar. Deixei minha mesa no escritório meio desorganizada, pois me foi conferida tanta coisa para fazer que meio que minha última preocupação era dar atenção ao meio onde eu estava.
Deixei-me pela metade ontem, quando te disse Adeus. Deixei-me pela metade ontem, quando te disse o que te disse.
O sol descendo as árvores, a luz de cor de pôr de sol nos nossos rostos. O meu molhado, o seu raivoso, desapontado. O irônico é eu não ter chorado, mas nunca suei tanto em minha vida. Há pouco tempo estávamos rindo como se o mundo estivesse acabando, agora o mundo estava realmente desabando e tudo o que eu podia fazer era insistir em continuar falando. Disse tudo o que havia ter dito aos poucos. Os segredos, as máscaras. Nunca senti tanto medo de uma resposta, e nunca uma resposta havia me cortado tanto as entranhas como as ditas. Eu sabia que isso aconteceria, eu te conhecia muito bem para fingir não saber. Acho que por isso o medo.

O ônibus, em uma parada brusca, abriu suas portas e todos começaram a sair. Nem havia reparado que eu já estava no ponto final. Trabalho, doce trabalho seria o de hoje. Nem os óculos escuros ajudavam a esconder meu rosto de morri e não enterraram. Corri para pegar o segundo ônibus e, como se não fosse nada, já estava sentada na minha cadeira, atendendo meus deveres.
Quando dei por mim estava chorando revendo fotografias antigas nossas. Os sorrisos nas festas, as poses espertas. O tempo hoje passava tão rápido quanto o tempo que passou desde que nos conhecemos. As lembranças me disseram isso, as fotos descordavam, as fotos coloriam o tempo em tons suaves, calmos. As lembranças me diziam que já estávamos no dia em que estávamos, me mostrava o passado e me perguntava como seria o futuro. E depois de ontem... Que dia...! Que dia cinza, este.