sexta-feira, 15 de outubro de 2010

As mãos


As mãos pequenas do pequeno moleque insistiam em estar sujas de terra, sujas de idéias. De manhã a escola o mantinha preso no saber que pouco lhe prendia, com crianças que pouco lhe interessavam e ensinavam nada que nem um pouco lhe importavam. Ah... mas os brinquedos... os brinquedos e ele se confessavam histórias que jamais existiram, levavam-se de volta a lugares que nunca tinham ido, compartilhavam a coragem de pular de um abismo e nem sequer arranhar-se.
Ele, a criança, não se importava com parques, com piscinas, com o real. Era o imaginário, o desconhecido a sua alavanca. Era o espaço, o fundo do mar, as profundezas de Terra. As suas asas eram brancas, enormes, como um pássaro alvo, puro. Os seus saltos duravam horas e seus vôos meses. Sua voz cruzava o planeta três vezes, se dita alta, para que todos pudessem saber o que ele estava querendo. Quanto à ele, ninguém o precisava dizer nada, pois podia ele ler pensamentos a quilômetros e mais muitos quilômetros de distância.
Estava sempre cercado dos seus brinquedos, das suas histórias, e o resto que seja o que fosse. Em seu reino, um belo dia lhe contaram sobre um dragão. Disseram-no para ter cuidado, diziam ser perigoso, diziam-lhe ser mágico. Contaram também onde o tal dragão morava, disseram ser numa colina alta o bastante para ninguém querer subi-la. O garoto, bravio e confiante disse aos aldeões para não se preocuparem, ele iria derrotá-lo e todos poderiam viver tranquilamente.
Subiu, pois, o garoto, com suas asas e sua velocidade. Chamou o tal dragão e sem demora apareceu em sua frente algo gigante vermelho e negro, sem dentes pela velhice, porém aparentemente fortíssimo. Após um tempo da batalha o garoto percebeu a destreza e sabedoria sobre lutas que o tal dragão havia ganho com o passar de tanto tempo, mas o garoto logicamente derrotou o tal dragão mágico. Em suas últimas palavras lhe disse o dragão
- Amaldiçoar-te-ei, garoto. Quando acordares terás a idade de quem te cria, e criarás alguém de tua idade agora.
- Pois não podes me atingir, voarei antes que possas jogar tuas palavras em mim!
E assim o garoto o fez. Fugiu o mais rápido que pode, fugiu como quem fugia de tudo o que mais poderia lhe machucar. Fugiu por dias, por meses, por anos, e adormeceu.

O despertador só sabia fazer um único barulho, porém chato o bastante para acordar uma pedra. Ou melhor, uma pedra em ressaca.
Olhou para o lado e não reconheceu quem estava ali. Estava nu, e pelo visto estava ela também. Sentou-se na cama e tentou lembrar do sonho que havia tido naquela noite, o fez suar mais que os rounds da noite. Não havia desligado o despertador ainda e a mulher o xingou.
Nunca entendia essas com quem saía. Estavam ali com ele, não estavam? Então que se acalmassem. Pegou o maldito despertador e o desligou sem carinho algum. Levantou-se sem se preocupar com roupões ou lençóis e pegou uma toalha seca.
- Vou tomar banho, se quiser tem comida na geladeira, se não, estou no chuveiro.
Ela mal se mexeu, e ele praticamente agradeceu. Alguém morto em sua cama seria melhor do que transar mais uma vez com aquela mulher, ou alguém mexendo na sua geladeira.

O barulho da água batendo no chão, do chuveiro funcionando; o vapor cobrindo os vidros, o espelho, encobertando os objetos distantes; talvez não conhecesse outra maneira mais bela de viver um começo e um fim de dia. Seus cabelos estavam cumpridos, mas suas mãos grandes podiam lavá-los por inteiro. Suas mãos eram enormes, sua estatura era de homem formado, seus trinta e quatro anos eram de homem bem-sucedido, assim como seu banheiro, seu quarto e o resto de sua casa. Sua companhia, também, dependendo do prisma em que olhava.
Mal percebera o tempo passar, ou os cabelos das pernas crescerem, ou seus pés calçarem 42. Mal se lembrava de como era antigamente, como era seu corpo antigamente. A água estava pelando, como sempre gostou; e o banheiro finalmente outro mundo, como sempre se viu estar. Um mundo mais branco, mais seu. Seu rosto não conseguia permanecer embaixo da água quente, então tirou o sabão com as mãos húmidas e esperou que funcionasse, como sempre. Ensaboou primeiro seus braços, depois seu peito, desceu e lavou as partes que lhe mais proviam diversão, depois as que algumas resistiam a deixar ele se divertir. As pernas, e por fim os pés. Seu ritual sagrado não se alterava desde muito tempo, e mal soube ele solucionar de onde havia tirado esta regra em que havia se imposto. Resquícios do sonho lhe vieram à mente. O colorido, os vôos. O sonho mais lhe parecia Dèja Vú.
O banho estava demorando demais, abriu o Box com suas mãos murchas e viu o relógio; estava começando a se atrasar. Pegou sua toalha e ainda com o chuveiro ligado secou-se. As mãos murchas na toalha nova, depois as mãos murchas para fechar a água. As mãos murchas para fechar o Box. Sentia-se cansado. As mãos murchas desembaçaram o espelho, e as mãos murchas apoiaram-no em frente ao seu reflexo. Sentia-se cansado ainda.
- Ainda? – disse baixinho, rindo em ironia.
Não conteve sua angústia. Pedaços do sonho continuavam transbordando pelos seus olhos. Via tudo claramente. Tirou as mãos murchas do mármore de sua pia, encostou-se e levou-as ao seu olhar. As mãos estavam murchas.
As mãos, antes sujas do dia, antes sujas da noite, estavam, agora, murchas.

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